Fora de cena, fora de foco. Divas, vedetas e tipos normais [TEATRO DELUSIO] FIMFA Lx17

CRÍTICA

Teatro Delusio, de Familie Flöz
Teatro Maria Matos, 11 de Maio 21h30
Espectáculo de Abertura do FIMFA 2017


Un vieux Shylock attendant, tout grimé, dans la coulisse, le moment d’entrer en scène. - Proust

Je veux passer dans la coulisse, de l’autre côté du décor, connaître enfin ce qui se cache, cela fût-il affreux. - Gide


Os marionetistas trabalharam durante muito tempo na penumbra, dando protagonismo às matérias e corpos fictícios que animavam, recolhidos e encaixados em castelets. Os técnicos costumam também situar-se em lugares de penumbra, entre bastidores e zonas ocultas ao público. No espectáculo Teatro Delusio que inaugurou o FIMFA 2017, os bastidores são transladados para o palco e os técnicos ocupam a cena, estreando-se como protagonistas. A ideia surgiu durante uma tournée em Itália, num dia de folga para os actores da Familie Flöz em que se surpreenderam a observar os técnicos a trabalhar. Mostrar em cena o que normalmente não se vê foi a primeira motivação para este trabalho.

Três actores desdobram-se em 29 personagens, numa panóplia de máscaras, eixo fundamental no trabalho desta companhia berlinense. Empenhado na sua missão de dar a conhecer o lado mais irreverente e transversal das marionetas, o FIMFA escolhe para abrir esta edição uma companhia que se assume justamente num cruzamento de diferentes linguagens artísticas (máscaras, marionetas, mimo, dança). Um teatro visual, sem palavras que assenta na ideia da metamorfose, explorando as possibilidades de transfiguração dos corpos actuantes e as múltiplas personas geradas a partir das suas 29 máscaras.

O espectáculo centra-se na acção de três técnicos que para além de assegurarem as entradas e saídas de actores encontram momentos de evasão em que suspiram pelas vedetas, primas donnas e bailarinas e também nos momentos em que fora de cena se prossegue com a vida normal. Nos bastidores ajeitam-se roupas, cabelos e adereços, bebem-se cafés, lêem-se livros e ouvem-se relatos da bola. Fora de cena é possível abandonar as personagens vividas em palco e também prolongar os seus actos em duelos, romances de capa e espada e outros momentos de furor que ficaram por viver. Os bastidores surgem aqui como uma espécie de não-lugares, espaços de passagem, pontos de confluência de chegadas e partidas, onde se transita e onde se espera.

Romper com ilusões, sem na verdade se abdicar delas, parece ser um dos motes de Teatro Delusio, oferecendo-nos com os seus manequins mascarados uma janela através da qual somos espectadores voyeurs, apanhados de surpresa nos bastidores. Uma representação em que se recria o que acontece nas zonas ocultas e nos intervalos de um espectáculo e no que isso pode ser revelador sobre o modo como este se constrói e como se mantém o teatro fora de palco, no quotidiano, nas horas banais, no gesto distraído e nas margens da cena. Revelar o que está por detrás das cortinas, desvendar o mistério e a materialidade do espectáculo, colocar o espectador do outro lado será provavelmente a melhor maneira de lhe oferecer mais graus de mistério, de interrogação, de ilusão.