Cinzas e demónios [Cendres] FIMFA Lx17

CRÍTICA
Cendres - Plexus Polaire
Teatro Maria Matos - 20 de Maio de 2017
FIMFA Lx17 – Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas


O espetáculo Cendres (Cinzas), da companhia franco-norueguesa Plexus Polaire, dirigido pela encenadora Yngvild Aspeli, é uma sucessão de imagens fortes, bonitas, delicadas e assustadoras que se apresentam em diferentes níveis e suportes: o de um escritor, representado por um ator, que cria a narrativa, e um outro em que a história de Dag, que, em 1978, pegou fogo à aldeia de Finsland, na Noruega, é contada através de marionetas.

O palco divide-se, assim, em dois planos: a boca de cena, separada do fundo do palco por uma tela onde se projetam palavras que se definem sob uma chuva de cinza ou se diluem em fumo e duas outras cenas pontuais, em que surge a marioneta do lobo (representação dos demónios interiores das personagens) e labaredas; e o fundo do palco, por detrás do ecrã, onde tem lugar a narrativa.

No início do espetáculo, enquanto o Escritor busca a musa inspiradora numa caneca de cerveja, aparece Dag, o incendiário, caminhando no escuro num passo leve e decidido que se transforma numa dança eufórica, agarrado a um cantil de combustível. A marioneta, manipulada por dois marionetistas vestidos de negro, encontra-se sobre uma plataforma, iluminada apenas por um foco direto no meio da escuridão. Nessa plataforma, surgem os pais de Dag, numa sala modesta. Os movimentos dos bonecos e a sua construção revelam tal realismo, que apesar de se cingirem a movimentos do corpo e da cabeça, consegue perceber-se o carinho entre a mãe e o filho e a ansiedade dos pais perante o seu comportamento. Para isto contribui a sensibilidade e precisão com que são manipuladas as marionetas (que se apresentam em dois tamanhos) e o desenho de luz e efeitos de imagem de Xavier Lescat. 

Mas Cendres não é apenas a história dos incêndios, é também a história do Escritor que a quer contar e que não consegue expressar através da escrita o episódio que o marcou desde a infância, quando ainda nos braços dos pais assistiu aos fogos na aldeia.

Os dois planos, o do Escritor e o dos incêndios ­– separados pelo ecrã transparente onde se leem as tentativas de redação da história e se observam as hesitações e correções –  correm a par e passo, ocorrendo breves instantes em que o Escritor e Dag, embora em planos diferentes, são sombras um do outro. Esta sobreposição mostra as similitudes entre os dois: o Escritor luta com o seu demónio, o álcool, e Dag com a vontade incontrolável de queimar tudo à sua volta.

A justaposição espacial entre as duas personagens, o Escritor e Dag, dá-se quando ambos se encontram no mesmo plano (seja atrás ou à frente da tela). A marioneta de Dag, tal como as dos aldeões, aparece então em tamanho real, e partilha o palco e a contracena com o Escritor. Os fogos já foram despoletados, a sirene dos bombeiros ouve-se repetidamente, na tela são projetadas imagens de labaredas e, atrás dela, os aldeões, entre os quais se encontra o Escritor ainda bebé ao colo do pai, observam a destruição.

Neste espetáculo sem palavras, uma música compassada marca o ritmo dos fogos que se acendem. Nos momentos de luta com os seus demónios, representados por uma marioneta gigante de Lobo, um som de rock pesado expressa a fúria das duas personagens atacadas pelas suas incoerências e ímpetos destruidores.

Finalmente, o Escritor compreende a razão pela qual sempre sentiu uma proximidade com o incendiário e por que a sua existência estava marcada pela desse homem: ambos esconderam aos seus pais as suas grandes paixões. Para Dag era o fogo, para o Escritor a escrita. É o reconhecimento final daquilo que os une que acalma os seus demónios e, no final, o Escritor consegue finalmente redigir a sua história, tendo atrás de si o Lobo, dócil como um cão de companhia, de focinho entre as patas, à espera do dono.