Uma tenda, dois saltimbancos, algumas marionetas e um cão [Bêtes de Foire - Petit Théâtre de Gestes] FIMFA Lx17

CRÍTICA

Bêtes de Foire - Petit Théâtre de Gestes
Museu de Lisboa - Palácio Pimenta, 13 de Maio
FIMFA 2017


“Homem elástico, equilibristas do impossível, malabarista com três cabeças e quatro mãos” são alguns dos números excecionais anunciados à entrada da tenda de Bêtes de Foire, uma viagem em que recuamos aos circos tradicionais dos teatros de feira. Entramos nesse circo resgatado no tempo que acolhia os que pela sua desmesura e excentricidade não cabiam noutro lugar, o mesmo circo de banidos que atraiu Fellini em La strada. A arena onde se exibiam os excêntricos, figuras deformadas, capazes de proezas, rompendo com as leis da anatomia, homens elásticos, corpos monstruosos, animais domesticados. Os incríveis, os extraordinários, os espantosos, os prodigiosos, os excecionais. Todos os que escapavam à realidade, ao banal, às normas; personagens das margens, capazes de causar o maior fascínio, espanto e estranheza.

Bêtes de Foire – Petit théâtre de gestes é simultaneamente o nome da companhia e do espetáculo que Elsa De Witte e Laurent Cabrol criaram há quatro anos atrás. Ela, atriz e figurinista nas companhias Cie Babylone, Les Alama’s Givrés e marionetista em Les Chiffonnières; ele, artista de circo e malabarista na escola de Annie Fratellini, no Cirque Plume e no Cirque Romanès. Encontraram-se no Théâtre Rugissant e pensaram num espetáculo que reunisse tudo o que aprenderam nas suas vidas, fácil de transportar para seguir pela estrada fora e com o qual se imaginam a envelhecer. Uma tenda de onze metros de diâmetro que acolhe aproximadamente cem pessoas e cabe num camião vermelho. “Somos minimalistas e a itinerância é-nos preciosa”, lemos no programa. Desse gosto pela miniatura e pela recuperação de materiais resulta a homenagem a Alexander Calder.

Bêtes de Foire assume-se como um circo itinerante de proporções reduzidas, feito de materiais recuperados, matérias primas que se conjugam e se revitalizam: couro, veludo, madeira, metal, lentes, espelhos, tecido, arame. Entramos na tenda e descobrimos um atelier de costura onde se empilham chapéus, mantas, tecidos, sapatos e manequins. Elsa De Witte é a costureira, “la maîtresse du chapiteau”, a única a quem o cão amestrado obedece. Com o seu olhar severo vai pedindo silêncio às crianças e prosseguindo as suas tarefas; o corpo encaixado na velha máquina de costura, acionando os fios e os truques de ilusão deste circo. Laurent Cabrol é o clown desastrado, homem elástico e malabarista a desafiar as leis da gravidade entre o equilíbrio e a vertigem. Em sussurros, as crianças vão desvendando os truques de magia umas às outras: “Aqueles chapéus estão presos por fios”. De vez em quando ouvem-se os pavões a passear no jardim do Palácio Pimenta.


Nesse ambiente intimista, vão surgindo as marionetas, personagens desse circo perdido no tempo e construídas à vista de todos: um homem orquestra atravessa a pista, um equilibrista passa de bicicleta por cima das nossas cabeças numa corda bamba, o corpo da costureira transforma-se em dois velhos que dançam forró, os materiais e as estruturas do atelier conjugam-se criando dois acrobatas num número intitulado “le porteur et la voltigeuse à la Calder”. Revelar os truques e manter a ilusão é um dos efeitos produzidos pelos números deste circo de pequenas dimensões e como no circo de Calder há momentos em que nos sentimos dentro de um atelier, onde nos mostram os diferentes passos para a transformação da matéria, esculturas em movimento num jogo de pista. As marionetas deste circo artesanal são personagens feitas de artefactos, de objetos toscos e rudes que escaparam da sucata para viver com maior poesia. Calder confiou uma vez que passeava nas ruas de Filadélfia com os bolsos cheios de objetos curiosos que encontrava pelo caminho: pedras, pedaços de madeira, elementos metálicos, vidros partidos entre outras coisas obsoletas e estragadas que aparentemente já não serviam para nada. Os mesmos materiais de construção com os quais ele criaria mais tarde o seu circo em Paris.