O magnífico cabaret tragicómico de Madame La Mort [Tria Fata] FIMFA Lx17

CRÍTICA

Tria Fata, Cie La Pendue
São Luiz Teatro Municipal - Sala Mário Viegas - 26 de Maio de 2017
FIMFA Lx17 – Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas


A Cie La Pendue, criada em 2003, por Estelle Charlier e Romald Collinet, divide as suas produções entre uma vertente mais tradicional – inspirada pela figura de Polichinelle, com recurso à técnica da manipulação de marionetas de luva –, e uma outra, de cariz contemporâneo e mais experimental, em que misturam várias técnicas de manipulação, categoria na qual se insere o espectáculo apresentado no FIMFA ’17. Esta companhia francesa tem como missão a defesa da marioneta como símbolo universal da condição humana, abordando o lado mais negro da existência de maneira a levar o espectador a debruçar-se sobre temáticas duras e complexas e a reflectir sobre o que significa ser humano. É exactamente isto que a manipuladora e actriz Estelle Charlier e o multi-instrumentista Martin Kaspar Läuchli proporcionaram ao público de Tria Fata, um espectáculo que trata a morte com humor e sensibilidade.

O título denuncia, à partida, a questão da finitude da vida, remetendo para as três parcas (Nona, Décima e Morta na mitologia romana), que tecem e cortam os fios da vida, determinando o destino de cada indivíduo e estabelecendo, desde logo, um paralelo entre a marioneta e o homem, questão explorada visualmente no momento em que Madame La Mort – representada por Estelle Charlier com recurso a uma máscara alusiva à morte – tira a vida à única marioneta masculina do espectáculo, ao cortar os fios que permitiam a sua manipulação.

É Martin Kaspar Läuchli quem recebe o público, qual mestre-de-cerimónias circense, e assegura toda a música e efeitos sonoros que acompanham o espectáculo e que contribuem para aligeirar a densidade do tema. Martin, capaz de um malabarismo musical impressionante, canta e toca, em simultâneo, uma bateria, um acordeão e um clarinete (alternado com um clarinete baixo), antecipando a entrada em cena da Morte, um pequeno fantoche, que parece lutar e brincar com a marionetista. 

A pequena morte agiganta-se e regressa à cena dançando e seduzindo (a manipuladora/actriz recorre à já referida máscara) para surpreender uma senhora de avançada idade – uma marioneta de mesa numa cadeira de rodas – que, incrédula perante a sinistra visita, tenta negociar uma extensão da sua vida, mesmo que breve, oferecendo como garantia as suas pernas em troca de permissão para contar a história da sua vida antes de morrer. Assistimos, então, a um parto surreal, em que a parturiente – a sua mãe (uma marioneta de mesa) – faz uma cesariana a ela própria, recorrendo a uma faca eléctrica para cortar pão, mas acaba por desmaiar e deixar para o bebé (um pequeno fantoche) a responsabilidade de se fazer nascer. O destino da personagem foi, de certa maneira, traçado à nascença, já que viria a tornar-se a mais famosa parteira da região.

Testemunhamos o relato do seu percurso, não apenas através da manipulação de diferentes marionetas que representam essa mesma personagem ao longo das várias fases da vida, mas também por meio de teatro de sombras. Vêmo-la apaixonar-se, viajar, ter filhos e envelhecer através de um fascinante “slideshow” analógico – uma espécie de lanterna mágica – em que a manipuladora, recorrendo a dois projectores no fundo do palco e uma tela de dimensões médias que manuseava entre os dois focos, executou um delicado bailado de recordações que constituiu um dos momentos mais belos e visualmente impactantes do espectáculo.

Tria Fata apresenta-se próximo do fantástico e do absurdo, com uma animada banda sonora, uma estética negra – quase goth – e momentos de grande sensibilidade e beleza visual. Apesar de revelar um apurado sentido de humor, Tria Fata é um espectáculo pautado por uma certa tristeza. Podemos considerá-lo, em suma, uma tragicomédia que universaliza, através da figura da marioneta, uma história de vida particular, levando o espectador a reflectir sobre a condição humana.