Sentir a terra a mexer [Celui qui tombe] FIMFA Lx17

CRÍTICA
Celui qui Tombe, Yoann Bourgeois - CCN2
São Luiz Teatro Municipal - Sala Luiz Miguel Cintra - 21 de Maio de 2017
FIMFA Lx17 – Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas


Cair é uma das primeiras aprendizagens do ser humano no momento da aquisição da marcha, etapa de conquista da verticalidade e controlo do equilíbrio. Embora associado à ideia de aprendizagem, o verbo cair surge sobretudo como sinónimo de fracasso ou acidente. Na Bíblia, a Queda significa a transição de um estado de inocência e obediência para um estado de culpa e irreverência. Yoann Bourgeois é um artista de circo, habituado a gerir o equilíbrio e a vertigem que se interessou pela queda, desenvolvendo desde 2010, trabalhos de criação a propósito da noção de “ponto de suspensão”, iniciados com os espetáculos L’art de la fugue (2011) e Jeunes pousses (2012) aos quais se seguiu um conjunto de quatro peças curtas sob o título Tentatives d’approches d’un point de suspension.

O ponto de suspensão, noção comum a várias disciplinas circenses, corresponde ao momento em que os corpos estão em movimento, numa postura de desafio às leis da gravidade e em que se desenham diferentes possibilidades de equilíbrio ou queda: “o momento em que um objeto é lançado ao ar, atingindo o ponto mais alto antes da queda”. A ideia de vertigem mantém-se igualmente no filme que o artista produziu com Marie Fonte Je me demande où partent les rêves, a partir da obra Autoportrait de Edouard Levé: «Lembro-me da vertigem que senti com seis anos, quando deitado na relva pensei que se deixasse de haver gravidade cairia no céu».

Em Celui qui tombe, os seis bailarinos e acrobatas experimentam diferentes modalidades de equilíbrio numa plataforma giratória de madeira que pesa quase duas toneladas, num quadrado de seis metros por seis, desafiando-os, à medida que aumenta a velocidade de rotação e os graus de inclinação, elevação e descida. Ouvimos o som da madeira a vibrar e a ranger, como se a terra tremesse, enquanto esta pequena humanidade de três mulheres e três homens se agarram ao chão, suspenso por quatro fios de aço. As imagens multiplicam-se a partir das dinâmicas provocadas pelo dispositivo cénico em movimento, ao qual os intérpretes estão ancorados. Há momentos em que os corpos se assemelham a cadáveres ou mercadorias, descendo em declive a plataforma que os parece descarregar. Outras vezes parecem transitar numa urbe qualquer, com mais ou menos pressa, com mais ou menos resistência nas passagens rolantes que os transportam, nos seus diferentes trajetos. A certa altura, começam a entoar em coro Dido e Eneias de Purcell, formando uma pequena comunidade que se entreajuda a cantar, para regressarem à plataforma que os derrubou, erguendo-se de novo, à procura da terra, a experimentar pisar o chão outra vez. 

Enfrentar a gravidade, tentando não perder o chão parece ser a divisa destes corpos que num momento se desviam uns dos outros, para logo a seguir se apoiarem entre si, buscando pontos de equilíbrio, mas sobretudo formas de acolher e experimentar a queda. Encontramos ainda algumas ligações com o espetáculo Wu Wei (conceito taoista que significa não agir) que Yoann Bourgeois apresentou em 2012, onde procurou compreender o que se passa quando as forças da natureza tomam o controlo: “Je ne veux pas provoquer les choses, mais les laisser venir… “. Em Celui qui tombe mantém-se de certa forma a mesma lógica, observando o que acontece quando nos deixamos levar e como reagimos a essa perda de controlo. Deixar-se cair, deixar-se transportar e sentir a terra a mexer são aqui formas de criar movimento.

Por vezes, os deslocamentos dos intérpretes lembram as personagens espetros de Beckett que exploravam as diferentes possibilidades de trajetória no espaço quadrado de Quad, ainda que as referências citadas por Yoann Bourgeois para repensar o movimento da queda sejam outras: Camus e Buster Keaton. Dois nomes, apesar de tudo, muito cúmplices de Beckett que não parou de perguntar como recomeçar depois de cair e como continuar em movimento depois do fracasso: “Try again, Fail again, Fail better”. Neste espetáculo que fala sobre fragilidade e instabilidade e também sobre resiliência e liberdade surge com doses equilibradas de ironia, humor e poesia a voz de Sinatra em My Way, a acompanhar essa ode ao risco, uma força que se ergue perante o medo das falhas e do fracasso, sem grandes arrependimentos: “Regrets I’ve had a few, But then again too few to mention. I did what I had to do. And saw it through without exemption. I planned each chartered course. Each careful step along the by way. And more, much more than this, I did it my way.”